Por: Helena Iono
Na noite de 22 de novembro, após os resultados eleitorais oficiais, pairou um silêncio mortal na Argentina, quase como um black-out, ou um toque de queda em tempos de guerra. Entre a tristeza profunda de 12,5 milhões que renderam o voto de apoio e um “sim” à continuidade das conquistas sociais dos últimos 12 anos de governo popular e democrático de Néstor e Cristina Kirchner (votando a Scioli), e o silêncio de uma parte dos eleitores que completaram a vitória eleitoral de Macri com uma parquíssima diferença de 2,8%, concedida por uma espécie de “voto inseguro”, dos ludibriados, que provavelmente sentiam temor pelo futuro e que, mesmo após a vitória, vivem de incertezas e quiçá pensavam, sem festejar: “votamos no escuro, a um tipo disfarçado, sem propostas claras e enganosas. Será que demos um tiro no pé?”. Nenhum burburinho de alegria e de festa, salvo um punhado de gente no Obelisco para a imprensa mundial, entre balões e música no melhor estilo norte-americano, calculando como poder agora tirar proveitos pessoais, pisoteando o sonho dos oprimidos, dos trabalhadores, da consciente e culta classe média argentina por um país justo e soberano.
Mas, passado o momento emotivo, vamos aos fatos objetivos, compartilhando algumas reflexões de analistas argentinos que circulam após o pleito. Houve uma derrota eleitoral de Scioli da FPV, mas não uma derrota social, nem do projeto econômico-social e político criado e praticado nestes 12 anos. Os 48,6%, correspondentes a 12,5 milhões de votos, estabelecendo uns 700 mil de diferença em relação ao vencedor, e conquistando a maioria na Província de Buenos Aires (onde no 1o. turno perdeu o governo), e o governo de 15 províncias, são votos compactos, conscientes na defesa deste projeto, crescidos no seio de uma reação popular nestas últimas 2 semanas de campanha, frente à ameaça de retrocesso aos anos 90, que não poderá ser imposto sem métodos ditatoriais. A militância das várias agrupações da FPV, independentes, jovens, artistas, jornalistas, cientistas, ocuparam os vários pontos das cidades, parques, bateram de porta em porta, acionaram rádios e tvs comunitárias, fizeram panfletos e vídeos-spot, ocuparam redes sociais difundindo os pontos programáticos que explicitavam que Scioli era a continuidade de um projeto de empoderamento de um Estado democrático e inclusão social. Por outro lado, os 51,4% de Macri são votos de uma junção de partidos (PRO, Unen de L. Carrió, Radicais conservadores) de direita, da oligarquia e grupos financeiros, que se disfarçaram atrás da sigla “Cambiemos”(Mudemos), de palavras vazias, “todos unidos”, “paz e amor”, os do grande capital finaceiro, do neo-liberalismo dos 90, dos agentes da ditadura, do pró-Alca, da Aliança para o Pacífico, do anti-bolivarianismo. Para chegar a esta votação, usaram um marketing fabricado pelo Tio Sam, de que é possível mudar de liderança política, com novas caras “sorridentes”, sem mudar o projeto já existente; ocultou seu projeto neoliberal para enganar parte da nova classe média, do comerciante e do lúmpen proletariado. São táticas padronizadas, da sedução e do engano, como Capriles Radonski na Venezuela que se disse continuador das missões sociais implementadas por Chávez, e seguidor de Lula, para ocultar seu projeto fascista.
Mas, a governabilidade de Macri será difícil; deverá se confrontar com uma feroz disputa de interesses internos e de poder. A sua intenção de retroceder o país às privatizações, aos acordos com o FMI e aos ajustes neoliberais (*), encontrarão um Congresso onde a FPV tem a maioria (na Câmara dos Deputados não faz quórum, mas tem a maioria; no Senado, faz quórum e tem maioria; podendo barrar algumas tentativas de retrocesso nas leis consolidadas), e nas ruas, bairros e fábricas, 12,5 milhões de mobilizados vão defender o já conquistado. A memória pelos 30 mil desaparecidos não se apaga. Macri deverá olhar por onde pisa. Já lhe puseram um pé no freio para não dar marcha ré: jornalistas e trabalhadores do jornal “La Nación” contestaram o editorial de ontem em que chamava a não aplicar a lei contra lesa-humanidade que pune os repressores da ditadura. Macri, na primeira coletiva de imprensa, ao ser indagado, teve que dizer que continuará com os julgamentos.
Evidentemente, a cara nefasta dos planos de governo neo-liberal de Macri vão se manifestar mais rapidamente no plano da política internacional. Este governo, é uma ameaça à unidade latino-americana conquistada por Chávez e Cuba nos últimos anos, à solidificação de Mercosul, Unasul, Celac, Brics e à integridade dos governos progressistas e revolucionários na Venezuela e Brasil. Macri já se pronunciou pela aplicação da Carta Democrática para expulsar a Venezuela do Mercosul, alinhando-se com os golpistas venezuelanos. O resultado das eleições presidenciais na Argentina alteram as relações de forças na América Latina, reforçando no seu interior, os agentes desestabilizadores que provém da Europa EUA e Otan contra os países progressistas do Oriente Médio, Síria e Irã. Porém, a batalha não está vencida. Não vai ser fácil a Macri manter uma política de enfrentamento com a Venezuela, pois já o Brasil e Uruguai se manifestaram contra a posição a Argentina nesse quesito do Mercosul. No Irã acabam de se reunir, Putin, Maduro, Evo, com Khamenei para convênios de intercâmbio que injetam gás à unidade dos países que reforçam a resistência às guerras de ocupação e golpes reacionários. Tudo isso, no bojo de uma Rússia que com Putin lançou a ação na defesa da integridade do povo e governo democrático da Siria. A chamada “nova Argentina” não poderá apagar da noite ao dia os acordos econômicos com a Rússia e a China (que deram vida, graças as nacionalizações, ao transporte ferroviário argentino), ceder ao FMI e Fundos Abutres, sem desmantelar direitos sociais e enfrentar uma reação popular de proporções inimagináveis. Sem falar na bomba da política cambial e de desvalorização do peso que está por implementar; a oligarquia vibra com o fim das retenções às exportações, e as pequenas e médias empresas, temem o fim dos subsídios, o aumento dos preços com a desvalorização, pressão trabalhista por aumento salarial, e desemprego; e a ameaça ao fim das paritárias já agita o movimento sindical.
No cômputo das reflexões é preciso inserir os erros e as falhas que levaram a esta derrota eleitoral, que é um verdadeiro golpe. Este não assume a cara violenta como no golpe contra Allende em 1973. É a época dos “golpe suaves”. O preâmbulo foi o constante ataque à imagem de Néstor que enfrentou a Alca, e Cristina que cortou as asas dos Fundos Abutres, instigado pela eterna e não erradicada aliança entre a mídia (Clarin, e La Nación, Canal telefisivo TN) e o poder Judiciário, evidenciada no caso Nisman. Apesar da implementação da “Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual” (Lei da Mídia) que limita o poder da mídia privada, a sua aplicação encontra dificuldades; uma recente decisão judicial da Corte Suprema rechaçou a apelação contra a medida cautelar que exime o Clarin de adequar-se a essa lei. Não obstante a acertada utilização da TV Pública e das cadeias nacionais para comunicar discursos e medidas presidenciais, e programas de informação objetiva e formação política como o 6,7,8, o poder e a guerra dos grandes proprietários midiáticos são implacáveis e não foram debelados. O papa Francisco, chamou acertadamente ao voto de consciência. Mas, a dificuldade em construir consciências é enorme como no Brasil onde encontramos várias semelhanças no comportamento psíquico-social de uma parte da classe média instrumentalizada pela direita. Seja na época de Hipólito Irigoyen, como de Perón, a nova classe média beneficiada pelas medidas de inclusão social, voltaram-se contra e foram base de golpes de direita. O mesmo ocorreu nesta eleição na Argentina, onde a era Kirchner reduziu a 5,9% o desemprego, desendividou o país e deu dignidade aos humildes, soberania e cultura. Não obstante, a nova classe média quer mais e oscila, sem a consciência do proletariado, envenenada pela campanha midiática do “medo”, do terror, da insegurança. Sectores como este, são midiaticamente induzidos ao racismo, ao egoísmo, e até a considerar obras culturais como a transformação do velho Correio Central em Centro Cultural Kirchner, com dezenas de salas de exposição, cursos, teatro e espaço infantil, espetáculos, totalmente gratuitos, possibilitando o acesso dos pobres à cultura, como gasto inútil do dinheiro público. Paira no ar a dúvida do que ocorrerá com todos os patrimônios da Memória, como o Museu da ESMA, do Museu da Memória e Vida (ex- Mansão Seré, recentemente violada por fascistas). Não há dúvidas de que o povo argentino, saberá defender todas as conquistas dos 12 anos de dignidade: o subsídio universal por filho, o matrimônio igualitário, a lei de identidade de gênero, o das empregadas domésticas, a Aerolíneas Argentinas, a YPF, as ferrovias nacionalizadas e os trens chineses, a aposentadoria mais alta da A. Latina, os 118 netos e filhos de desaparecidos, o Fundo estatal das aposentadorias (AFJP), Tecnópolis, os 2 satélites nacionais, os programas infantis de Paka-Paka, o Canal “Encuentro”, o Museu da TV Pública, e o do Bicentenário, as “madres y abuelas de Plaza de Mayo”, a visita dominical livre na Casa Rosada, as Malvinas argentinas, etc…
Após estas eleições, muitas reflexões serão feitas. Porque, não obstante tudo isso, venceu o voto pela mudança-retrocesso. Pergunta-se se o reformismo, neste contexto mundial de crise capitalista, na Europa e no mundo, está chegando ao seu limite, e se é possível continuar indefinidamente avançando somente com a dependência a pleitos eleitorais? Pode-se enumerar algumas falhas: o descuido com a comunicação direta com o povo, através dos organismos de bairro, da base sindical, das escolas; e a mais profunda, que tem sido a ausência de medidas muitas de ruptura com o sistema capitalista, com o poder dos bancos, a falta do monopólio estatal do comércio exterior; tudo isso poderia ter avançado nestes últimos anos. É provável que estava no projeto de Cristina Kirchner e sua equipe, de aprofundar estas metas na próxima gestão peronista-kirchnerista com Scioli, com apoderamento popular, limpezas burocráticas e superação de carreirismos; relações internacionais decisivas com a Rússia e a China. Sem avançar em direção a uma estrutura econômica-político-institucional de ruptura do Estado em direção a um Estado Revolucionário, e real poder popular não há eleição que suporte um processo linear de avanço de um projeto profundo de transformação social. É hora de pensar em como os governos progressistas devem partir da democracia representativa à democracia participativa. Evidentemente, a crise mundial encurta os prazos, e a onda reacionária tenta impedir que todas as tarefas e metas revolucionárias se cumpram a tempo. Néstor e Cristina deixaram um legado e não se equivocaram jamais num ponto central: sem a unidade socialista dos povos e governos progressistas da América Latina e do mundo não há como edificar a soberania de nenhum país. Por isso, é fundamental que nas próximas eleições de dezembro na Venezuela toda a América Latina esteja atenta e apoie o triunfo do governo bolivariano de Nicolás Maduro. O povo argentino sofreu um golpe, mas tem memória e saberá estar em pé de luta e defender com força a sua dignidade e soberania.
- Helena Iono
Helena Iono
Colaboradora da TV Cidade Livre
(canal comunitário de Brasília)
(*) Mais sobre quem é Macri: “O capitão que conseguiu os votos”, de Martin Granovsky publicado no jornal argentino Página 12, do dia 23 de novembro, e no Carta Maior http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/O-capitao-que-conseguiu-os-votos/6/35041